De saída, Mandetta deixa recado a futuro ministro: “quem discorda é massacrado”
O ministro Luiz Henrique Mandetta e o secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis, durante coletiva em Brasília. Ueslei Marcelino/Reuters
“Eu to indo embora, viu. Não aguento mais ser tratado desse jeito. Estou falando sério. Quando eu digo que eu vou embora eu vou embora. No momento em que eu atravessar aquela porta, não tem mais volta. Caso você tenha dúvida, ‘ele está indo embora?’, sim. É verdade. Eu minto? Sou uma pessoa que mente? Só evita grunhir. Não fala nada pra eu não achar que é pra voltar. Até chegar lá na porta tem volta. Depois, não tem mais”.
A ameaça hesitante parece fala de ministro da Saúde em tempos de quarentena, mas é só o roteiro de um esquete do Porta dos Fundos, em que Gregório Duvivier faz que vai e não vai embora diante do silêncio da namorada, que já não se importa com a cena.
Enquanto o ministro da Saúde passou a semana falando mais sobre sua iminente saída do que da pandemia, Jair Bolsonaro segue em silêncio, como a personagem de Letícia Lima. A diferença é que o esquete dura menos de três minutos, enquanto a novela Mandetta já dura semanas.
Seria cômico não fosse macabro.
Já nem tão reservadamente assim, Mandetta tem se pronunciado, como se preparasse seu substituto para o que vem por aí. E o que vem por aí é o que o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), chamou de “Bolsonaro-Vírus” em uma entrevista à Associated Press.
Mandetta usou outras palavras. “O mundo terá que ter grandes cabeças que vão ter que encontrar um equilíbrio. Fazer um novo mapeamento das dependências que nós criamos dos sistemas de saúde. Quem olha o vírus sozinho vai errar porque ele ataca a educação, a economia, a Olimpíada, porque ele se impõe”, disse ele a especialistas pela manhã.
Sobre o ambiente de trabalho, disse haver não apenas má comunicação devido à baixa formação dos envolvidos, mas uma má comunicação política, “onde aquele que não concorda com a opinião é massacrado”.
Depois de sinalizar arrependimento pela entrevista ao Fantástico, ele voltou à carga e, à revista Veja, disse que está há “60 dias tendo de medir palavras”.
“Você conversa hoje, a pessoa entende, diz que concorda, depois muda de ideia e fala tudo diferente. Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né?”
O “camarada”, enquanto isso, já recruta substitutos, provavelmente aplicando um teste de múltipla escolha que amplia a pontuação do candidato a partir de níveis de concordância:
“Gosta de holofotes?”
“E de cloroquina?”
“Qual sua opinião sobre o nióbio?”
“Como podemos nos livrar do comunismo sanitário?”
“Responsa rápido: coronavírus é gripezinha ou resfriadinho?”
“Por que você está me olhando? Quer me derrubar?”
A manobra, porém, não é fácil em um país que já supera 200 mortos diários pelo coronavírus — um acidente aéreo a cada 24 horas, como lembrou um amigo.
Desmoralizado, Bolsonaro criou tanto caso que agora terá de trocar a roda com o automóvel andando.
O estrago é considerável, inclusive para sua capacidade de liderar. Segundo a consultoria de imagem Curado e Associados, a crise fez com que Bolsonaro passasse a ser visto na imprensa como “irresponsável e incompetente” em um momento de tensão com o STF, que deu a estados e municípios o poder de definir as regras de isolamento social, e tem a sua liderança na crise da Covid-19 definida por um editorial do jornal “The Washington Post” como “o caso mais grave de improbidade entre todos os líderes mundiais”.
Numa escala de -5 a +5, sua “nota”, de acordo com o estudo, é hoje de -3,57, o que configura nível de “crise”. Até agora, a crise é um incêndio debelado com galões de gasolina e ego ferido.